Quando eu nasci, pela metade de 1996, meus pais eram relativamente novos. Ela, 22. Ele, 24. Mas já trabalhavam há algum tempo e sempre puderam me oferecer as condições necessárias para que eu vivesse bem. Desde pequena estudei em escolas particulares (nunca as melhores, mas que me deram muito embasamento para eu almejar grandes sonhos), tive a motoca da Barbie e roupas de boas lojas. Meus pais fizeram seus sacrifícios: apertaram de um lado, adiaram a faculdade do outro e eu vi minha mãe ser administradora só com meus 10 anos.
Também em maio de 1996, no mesmo dia em que cheguei ao mundo, eu precisei ir para uma UTI neonatal. Tive pneumonia por aspirar o líquido amniótico (também chamado de "água do parto"). Aí que entra o assunto de hoje: eu pude fazer todo o processo, desde que minha mãe deu-se que eu era um pequeno feto até eu vir ao mundo, por conta dos planos de saúde. Meu pai trabalha em uma empresa que pode oferecer um ótimo plano de saúde para todos nós. Fui para a UTI, fiquei internada e fui cuidada por uma equipe de médicos muito competentes em sua maioria. Tô aqui hoje contando a história depois de terem falado para minha mãe que eu quase fui perdida na virada do dia 20 para o 21 de maio, em que eu não tinha nem 24 horas de vida.
Quando eu preciso, vou a um hospital particular. Algumas vezes sou bem atendida, outras não. Detalhes de um cartel que não preciso especificar aqui. Pouco tive a reclamar durante toda a minha vida sobre meu plano em específico.
Aos 17 anos adentrei em um ambiente hospitalar como técnica em análises clínicas. Encarei a morte pela primeira vez num hospital público e com a ambição de ser médica. Por ser técnica, o menino que morreu não me tem rosto nem proporções físicas definidas. Seu nome viveu na minha mente por muito tempo, mas reservo-me ao direito de poupá-lo em seu respeito e no de sua família, que pode nunca ler isso mas teve todas as minhas orações desde então.
A história dele se compara à de qualquer menino de 11 anos. Brincando de bola na rua, perdeu o que a gente chama de "cabeça do dedo". Sangrou. Ele continuou brincando.
Três dias depois, uma visita à UPA e "Mãe, não se preocupe. É só uma febrezinha"
42ºC de febre dias seguidos não pode ser normal. Só uma febre? É dipirona mesmo, moça?
Esse menino foi parar no hospital de referência, também público, onde eu estava duas semanas depois da sua visita à unidade básica de saúde. Os esforços da equipe médica eram exaustivos.
Eu fui a primeira do hospital a ver os hemogramas. Passei ao supervisor a informação. Alarmante. Ele não mais coagulava. Diagnóstico? Sepse (infecção generalizada) por um Straphylococcus potente. Dias de antibiótico. Cada vez menos plaquetas. Talvez uma melhora! O hospital inteiro se acendeu de motivação.
Logo após, a morte.
Ele poderia ser meu primo, meu amigo e tem a idade da minha irmã. O que levou um menino tão novo assim e por que ninguém relacionou o corte a uma provável infecção de bactéria que pode estar na microbiota? Por que o caso dele já nos chegou tão grave? Por que só 40 gotas de dipirona?
Para um profissional de saúde, o primeiro caso que você acompanha que resulta em morte é um soco no estômago. Não consegui me concentrar bem naquele dia por causa do rosto do menino que eu nem conhecia. Das brincadeiras que ele não mais participaria. Do grito da mãe dele ecoando pelos corredores e dos olhares assustados das crianças que estavam próximas. Da minha dúvida: por que ninguém teve a ideia de tratar do menino antes? POR QUÊ? Liguei para minha mãe e ela disse: "Esse é seu mundo agora. Abrace-o e ore pela família"
Isso fez ruir algumas das coisas maravilhosas que me fizeram ler sobre o SUS (Sistema Único de Saúde). Das páginas que eu tive que engolir a contragosto e depois me apaixonei pela ideia. O que eu estava preparada para encontrar vi em muitas pessoas: garra, coragem de devolver a vida ao menino sem rosto. Vi em mim isso nascer todos os dias, a cada exame que eu repetia e me apavorava. Eu vi nascer em mim uma vontade que eu nunca havia visto nascer antes de fazer o que valia a pena. Nunca prestei tanta atenção a um procedimento como naqueles dias, e geralmente sou bem concentrada nos meus trabalhos. Ganhei mais força para correr atrás do meu objetivo e todos os dias agradeço silenciosamente ao menino sem rosto, mas que me trouxe muito conhecimento e força de vontade.
Meses depois, já formada, tive uma das minhas várias crises de pressão. No cinema, vi o mundo apagando pouco a pouco e puf, fui-me. Isso acontece muito em dias quentes e em que como pouco, condições fornecidas em um shopping que havia ficado sem luz. Meu namorado demorou um pouco a raciocinar e me levou a um quiosque. Lá me ofereceram sal para pôr debaixo da língua e me colocaram numa condução já semi-desmaiada. Cheguei ao hospital público pela primeira vez claramente pálida e perdendo a consciência. Ninguém passou por mim para perguntar o que eu tinha. Ninguém, nenhum dos médicos e enfermeiros que passavam de um lado para o outro e conversavam, atentou-se para a garota caída nas cadeiras de um hospital novíssimo (com suspeitas de lavagem de dinheiro em sua construção).
Ninguém. Meu namorado me deixou na cadeira e foi procurar ajuda. Havia um enfermeiro que disse "Não posso fazer nada por vocês porque já é momento de troca de plantão e eu quero ir embora." Nem ele saía da sala nem nós éramos atendidos. Uma insistência a mais e lá fui eu, a essa hora já um pouco melhor por conta do sal das moças do quiosque (valeu aí, suas lindas!). A contragosto ele perguntava e eu respondia: "Nome: Ana Beatriz. Idade: 17 anos" "Você não pode sair sozinha. Dá o braço: 9 por 6, tá melhor, vai embora"
Assim.
Desse jeito.
Como eu não melhorava e meu pai já vinha comer meu fígado em esporros ("Bem feito que almoçou hamburguer, é pedir pra pressão cair!"), fiquei sentada na mesma cadeira do hospital. Meu nome no alto-falante... Eu não estava sendo liberada porque estava melhor. Eu estava sendo transferida para outra unidade de saúde já que meu caso precisava ser avaliado porque na emergência daquele hospital novo e gigante não havia UM ambulatório para dar seguimento ao caso. E como eu deveria ir? Sozinha. Não havia ninguém no hospital que pudesse ajudar. Mesmo eu sendo menor de idade e não podendo sair sozinha com meu namorado, também menor.
Sinceramente, ignoro se isso acontece em todos os hospitais públicos. Tive boas referências no meu local de estágio, também público. Mas o que vi acontecer comigo, mesmo num caso não-grave (mas que merecia atenção, como tantas outras vezes aconteceu) foi inacreditável.
O que vi naquele dia, naquele hospital, foi descaso. No mesmo momento em que eu estava lá, distingui a presença de dois policiais que estavam lá "botando ordem" numa briga entre pacientes e profissionais, que se recusavam a atender um pé aparentemente quebrado. O descaso atingindo diversas esferas de gravidade.
A resolução do SUS de triagem dos casos, que vi tão bonita no papel, ruía por causa de funcionários que ignoravam gravidades e atendiam da forma que bem queriam. Vi num hospital público que faço parte do grupo infinitesimalmente pequeno que tem acesso a boas condições de saúde no Brasil. Vi que o que falta não é médico estrangeiro.
É apoio, educação e suporte pros profissionais daqui.